Hora
combinada: o carro já estava na oficina, preços e prazos acertados. O jeito era
tomar um ônibus. Assim, começaria a manhã que, marcada pela chuva, fina, levantava-se
mais uma vez, trivial, quiçá fosse trivial!
Não
sei por um quê de fatalidade o ônibus não passou pelo ponto ao qual me dirigi.
Impelido pela chuva, não tão fina como de início, procurei um outro lugar para
abrigar-me. Camisa marcada pelas gotículas, chaves nas mãos, e o passe de
ônibus, colocado na carteira, outrora, por mãos preocupadas.
Sabe,
parece que existe uma linha condutora da vida que conduz ao inusitado, ao nunca
visto, ouvido ou sentido. E, naquele dia, foi a vez dessa linha fisgar-me.
Ao
cepo do ponto de ônibus uma senhora, da qual não consigo mensurar-lhe a idade, ora
pela aparência desfeita, pelo fato de ter acabado de acordar – tivesse ela
dormido ali? – ora pelas suas vestes – colocadas umas sobre as outras - que lhe
ocultavam as primaveras. Notei que à banqueta do descanso, ninguém podia
sentar-se, haja vista que seus objetos (não sei quais, mas eram muitos) estavam
colocados nas várias sacolas plásticas, num show
publicitário gratuito, levemente amassadas pelo uso cotidiano. Arrumando
seus pertences, alguns longos minutos se passaram. As mãos ríspidas iam de uma
sacola a outra, sempre lançando um olhar desconfiado e de soslaio em minha
direção.
Não
pude conter a curiosidade... sabe a abertura para o novo? Então...comecei a
interrogar-lhe: “Qual o seu nome?”, “Raquel”, respondeu-me secamente, talvez
não querendo conversar comigo. “Você é de onde?”, essa pergunta cabal começou a
desvelar para a mim a nulidade em que vivem as pessoas... “Eu morava Nova York”...
podia sentir a altivez (ilusória), no y,
do nome da localidade. Mas, sua fala emendou, revelando-se, incongruente: “Na
verdade, eu morava em São Paulo, minha mãe me deixou, eu fui parar na Febem, lá
era muito ruim...Sabe eu queria encontrar meus filhos...eu vim de lá” (apontado
para o lado de cima da rua).
Não
logrando êxito na minha curiosidade, procurando algo que rompesse com as incógnitas
expletivas que me eram proferidas, soltei-lhe a interrogativa “Você já tomou
café?”. Ela fez que sim com a cabeça, mas parece-me que o estômago falou-nos
mais alto.
Olhando
ao derredor, vi que acabara de ser levantada a porta de lata de um boteco, não
daqueles que vendem só o “Rabo de Galo”, mas aqueles que vendem guloseimas e um
lanche rápido para os transeuntes famintos que passam correndo sem ter nunca
tempo. Fomos.
Parece
que o gesto habitual era não entrar nos lugares, ainda mais quando não tinha
afinidade... A tal “Raquel” sentou à porta, puxei-lhe uma cadeira e disse-lhe
que sentasse. A moça do boteco, já tinha preparado o café, que estava na
garrafa quadriculada. “Ela toma só café”, disse-me com a veemência de quem já
conhece de outros carnavais a mesma fisionomia desfeita. Escolhi para ela, à da
porta, não àquela detrás do balcão de vidro, o maior lanche que tinha na
vitrina. Realmente a voz do estômago estava sendo mais sincera. Ainda, por
cautela, guardou um pedacinho para “mais tarde”.
De
volta ao ponto, a tal “Raquel” arrancou um caderninho, esses de mola lateral,
de uma das sacolas e uma caneta sem tampa de outra...e começou a escrever. Não
sei ao certo se escrevia ou rabiscava, estava eu sem os óculos. Ela olhava tudo
o que passava: carros, pessoas, motociclistas e anotava no caderno, que pela
espessura já tinha sido bastante surrado.
Esse
era seu ofício mais sublime: anotar. Revelava-se uma observadora proficiente,
dentro de suas limitações e possibilidades. O que “Raquel” não sabia é que
ensinava uma grande lição, de forma não intencional, mas habitual, ela via o
que não conseguimos ver na agitação do dia a dia, ela via o movimento, a cor,
ouvia o som dos carros, da enxurrada, via o movimento das coisas, a
transitoriedade das coisas, sentia o mundo, o simples.
Ônibus
encostado, chegou a hora de eu romper com o aprendizado a que estava imerso.
Disse-lhe um sonoro “Tchau”, ela respondeu-me. Motorista e passageiros ficaram
olhando para mim, como quem diz de si para si “O que ele estava falando com
essa esquisita?” – a importância dada pelas pessoas é com o que não é
importante. Da janela do ônibus notava que “Raquel” ainda anotava e ... sumia.