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terça-feira, 12 de janeiro de 2016

Você já tomou café?

Hora combinada: o carro já estava na oficina, preços e prazos acertados. O jeito era tomar um ônibus. Assim, começaria a manhã que, marcada pela chuva, fina, levantava-se mais uma vez, trivial, quiçá fosse trivial!
Não sei por um quê de fatalidade o ônibus não passou pelo ponto ao qual me dirigi. Impelido pela chuva, não tão fina como de início, procurei um outro lugar para abrigar-me. Camisa marcada pelas gotículas, chaves nas mãos, e o passe de ônibus, colocado na carteira, outrora, por mãos preocupadas.
Sabe, parece que existe uma linha condutora da vida que conduz ao inusitado, ao nunca visto, ouvido ou sentido. E, naquele dia, foi a vez dessa linha fisgar-me.
Ao cepo do ponto de ônibus uma senhora, da qual não consigo mensurar-lhe a idade, ora pela aparência desfeita, pelo fato de ter acabado de acordar – tivesse ela dormido ali? – ora pelas suas vestes – colocadas umas sobre as outras - que lhe ocultavam as primaveras. Notei que à banqueta do descanso, ninguém podia sentar-se, haja vista que seus objetos (não sei quais, mas eram muitos) estavam colocados nas várias sacolas plásticas, num show publicitário gratuito, levemente amassadas pelo uso cotidiano. Arrumando seus pertences, alguns longos minutos se passaram. As mãos ríspidas iam de uma sacola a outra, sempre lançando um olhar desconfiado e de soslaio em minha direção.
Não pude conter a curiosidade... sabe a abertura para o novo? Então...comecei a interrogar-lhe: “Qual o seu nome?”, “Raquel”, respondeu-me secamente, talvez não querendo conversar comigo. “Você é de onde?”, essa pergunta cabal começou a desvelar para a mim a nulidade em que vivem as pessoas... “Eu morava Nova York”... podia sentir a altivez (ilusória), no y, do nome da localidade. Mas, sua fala emendou, revelando-se, incongruente: “Na verdade, eu morava em São Paulo, minha mãe me deixou, eu fui parar na Febem, lá era muito ruim...Sabe eu queria encontrar meus filhos...eu vim de lá” (apontado para o lado de cima da rua).
Não logrando êxito na minha curiosidade, procurando algo que rompesse com as incógnitas expletivas que me eram proferidas, soltei-lhe a interrogativa “Você já tomou café?”. Ela fez que sim com a cabeça, mas parece-me que o estômago falou-nos mais alto.
Olhando ao derredor, vi que acabara de ser levantada a porta de lata de um boteco, não daqueles que vendem só o “Rabo de Galo”, mas aqueles que vendem guloseimas e um lanche rápido para os transeuntes famintos que passam correndo sem ter nunca tempo. Fomos.
Parece que o gesto habitual era não entrar nos lugares, ainda mais quando não tinha afinidade... A tal “Raquel” sentou à porta, puxei-lhe uma cadeira e disse-lhe que sentasse. A moça do boteco, já tinha preparado o café, que estava na garrafa quadriculada. “Ela toma só café”, disse-me com a veemência de quem já conhece de outros carnavais a mesma fisionomia desfeita. Escolhi para ela, à da porta, não àquela detrás do balcão de vidro, o maior lanche que tinha na vitrina. Realmente a voz do estômago estava sendo mais sincera. Ainda, por cautela, guardou um pedacinho para “mais tarde”.
De volta ao ponto, a tal “Raquel” arrancou um caderninho, esses de mola lateral, de uma das sacolas e uma caneta sem tampa de outra...e começou a escrever. Não sei ao certo se escrevia ou rabiscava, estava eu sem os óculos. Ela olhava tudo o que passava: carros, pessoas, motociclistas e anotava no caderno, que pela espessura já tinha sido bastante surrado.
Esse era seu ofício mais sublime: anotar. Revelava-se uma observadora proficiente, dentro de suas limitações e possibilidades. O que “Raquel” não sabia é que ensinava uma grande lição, de forma não intencional, mas habitual, ela via o que não conseguimos ver na agitação do dia a dia, ela via o movimento, a cor, ouvia o som dos carros, da enxurrada, via o movimento das coisas, a transitoriedade das coisas, sentia o mundo, o simples.

Ônibus encostado, chegou a hora de eu romper com o aprendizado a que estava imerso. Disse-lhe um sonoro “Tchau”, ela respondeu-me. Motorista e passageiros ficaram olhando para mim, como quem diz de si para si “O que ele estava falando com essa esquisita?” – a importância dada pelas pessoas é com o que não é importante. Da janela do ônibus notava que “Raquel” ainda anotava e ... sumia.